Bactéria transmitida por carrapato causa doença difícil de diagnosticar, o que impede tratamento rápido, essencial para sobrevivência
Os recentes casos de mortes por febre maculosa no estado de São Paulo acendem o alerta sobre a doença causada por uma bactéria que infecta carrapatos e de ocorrência predominante no sudeste brasileiro. A doença não é comum, mas infelizmente esbarra em duas problemáticas: seu diagnóstico difícil e sua rápida evolução em humanos.
“Essa doença não ocorre com frequência, e o aumento dos casos depende diretamente do ciclo de vida do carrapato, como pode ser observado em algumas localidades do interior de São Paulo, onde existe a circulação da bactéria. Mas por ser uma bactéria muito patogênica para o homem, sua letalidade pode ultrapassar 60% se a pessoa não for tratada logo no início dos sintomas”, afirma a pesquisadora e curadora da Coleção Acarológica do Instituto Butantan, Valeria Castilho Onofrio.
O diagnóstico, porém, é dificultado pelo fato de os primeiros sintomas serem febre, dor de cabeça e dor no corpo, o que é semelhante a outros quadros como resfriado, gripe ou dengue. O período de incubação da bactéria é de dois a 14 dias, e não é raro os infectados procurem atendimento médico somente quando percebem as primeiras erupções cutâneas (máculas) na pele, indicativo de evolução da doença.
“Como os sintomas iniciais são inespecíficos, a doença acaba confundida com várias outras, o que é muito ruim, porque a bactéria vai colonizando o organismo do paciente e a doença avança. Somente quando começa o quadro típico é que se inicia o tratamento, mas geralmente o paciente já não consegue responder muito bem”, explica a médica veterinária e professora da Universidade Anhembi Morumbi, Fernanda Nieri Bastos.
Para evitar a imprecisão do diagnóstico, as especialistas ressaltam a importância de procurar atendimento médico se apresentar sintomas após picada por carrapato e avisar o profissionalde saúde que esteve em área endêmica ou de mata.
Doença é rara
A febre maculosa é uma doença transmitida pela picada do carrapato infectado com a bactéria do gênero Rickettsia. No Brasil, há duas espécies de riquétsias: a Rickettsia rickettsii, considerada a mais letal, registrada em estados do Sudeste e no norte do Paraná, que causa doença grave; e a Rickettsia parkeri, registrada em ambientes de Mata Atlântica no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Bahia e Ceará, responsável por sintomas mais leves e moderados.
Estas cepas da bactéria infectam carrapatos do gênero Amblyomma, como A. sculptum, conhecido como carrapato-estrela; A. aureolatum, conhecido como carrapato do cachorro, e A. ovale. Os dois primeiros ocorrem com mais frequência na região metropolitana da cidade de São Paulo e em cidades do interior paulista, e o Amblyomma ovale nos demais estados do Sudeste e em algumas regiões de estados do Sul.
O Amblyomma sculptum ocorre em áreas rurais e de pasto, com pouca umidade, na sua maioria no interior de São Paulo, sobretudo nas regiões de Campinas e Piracicaba, e tende a parasitar cavalos, capivaras e antas. Já o carrapato Amblyomma aureolatum e Amblyomma ovale são encontrados em área de mata e parasitam na fase adulta canídeos (inclusive o cão doméstico), pequenos roedores e pássaros. “É importante evitar que cachorros circulem livremente pela mata de áreas endêmicas, pois eles podem trazer o vetor para suas casas e infectar pessoas”, ressalta a veterinária.
Há 20 anos, a febre maculosa foi incluída na lista de notificação compulsória de doenças no Brasil e cada caso deve ser informado às autoridades de saúde pública. De 2007 a 2023, o país registrou 2.868 casos de febre maculosa; destes 1.759 na região Sudeste – 1.064 somente no estado de São Paulo; 377 em Minas Gerais; 210 no Rio de Janeiro e 103 casos no Espírito Santo. No mesmo período, outros 672 casos foram registrados na região Sul; 35 casos no Centro-Oeste, 38 casos no Nordeste e 21 casos no Norte.
Já o número de mortes por febre maculosa entre 2007 e 2023 no Brasil foi de 925. Deste total, 817 ocorreram no Sudeste – sendo 574 em São Paulo, 131 em Minas Gerais, 74 no Rio de Janeiro e 38 no Espírito Santo – e cinco mortes no Sul. No Centro-Oeste foram registradas duas mortes e no Norte e Nordeste uma morte em cada região. Os dados são do Sistema de Informação de Agravos e Notificação do Ministério da Saúde.
Transmissão
A febre maculosa é considerada uma doença rara porque sua transmissão depende do ciclo de vida do carrapato, que é de apenas um ano. Isto é, o carrapato precisa ser infectado pela bactéria a partir de hospedeiros infectados em bacteremia, ou seja, que estejam com a bactéria circulando no sangue. A taxa de infecção de carrapatos pela bactéria é 0,5% a 1% quando a transmissão é relacionada ao Amblyomma sculptum.
“Devemos também considerar o fato de a bactéria causar impacto no ciclo de vida do carrapato. Sendo assim, a quantidade de carrapatos infectados é baixa e, por isso, a doença não é tão comum”, afirma Fernanda.
Porém, os carrapatos que vivem nas regiões citadas podem já nascer ou serem infectados ainda na fase de larva ou ninfa, perpetuando a infecção ao longo do seu ciclo de vida. Se durante este período um carrapato infectado picar a pele humana, transmitirá a bactéria através da saliva. Inclusive são os carrapatos imaturos, conhecidos como micuins, os responsáveis pela maioria dos casos de infecção pela bactéria da febre maculosa em humanos.
Isso ocorre porque, por serem muito pequenos, às vezes não são percebidos na pele e permanecem sugando sangue humano por horas ou dias, tempo suficiente para a bactéria atingir a corrente sanguínea e ocorrer a transmissão.
“O carrapato precisa ficar um tempo fixado no hospedeiro para que ocorra a infecção. Ele precisa de quatro horas pelo menos para a transmissão da bactéria, um fenômeno chamado de reativação. E a bactéria tem um período de incubação de dois a 14 dias”, afirma Fernanda.
Prevenção em humanos e animais
Há uma série de medidas para prevenir o contato de pessoas e animais com os carrapatos vetores da doença, embora não exista vacina humana ou veterinária contra a febre maculosa.
O indicado é evitar áreas endêmicas, mas caso seja necessário visitar tais locais, usar vestimenta que impeça o contato do carrapato na pele. "Não temos repelentes específicos para uso humano. Mas trabalhamos com a prevenção, como vestir roupas claras e compridas em áreas onde sabidamente há a presença dos ectoparasitas. Outro ponto importante é saber retirar o carrapato da pele de forma que o aparelho bucal, que é de onde ele inocula a bactéria, também saia", diz a veterinária. (Saiba mais no infográfico abaixo)
Em relação aos animais, recomenda-se o uso de coleiras carrapaticidas para cachorros e nos cavalos o uso de ectoparasiticidas, seja em forma de banhos terapêuticos ou via oral. No entanto, em relação às capivaras, outro hospedeiro primário dos carrapatos, a situação é diferente. “Como é um animal da fauna silvestre, não ocorre uma interferência direta na prevenção, pois somos nós que estamos invadindo cada vez mais o ambiente deles, aumentando essa proximidade e o risco de transmissão de doenças”, destaca a veterinária.
Reportagem: Camila Neumam
Foto: Andre Ricoy
Infográfico: Milena Martins do Nascimento
creditos: butantan